
Barreiras de preconceito dentro e fora dos serviços de saúde têm dificultado o diagnóstico precoce e o tratamento de câncer em pessoas trans, apontam pacientes e especialistas. O analista de mídias sociais Erick Venceslau, 33 anos, descobriu um câncer de mama agressivo há pouco mais de um ano. Quando procurou atendimento, o nódulo já media três centímetros; na primeira avaliação oncológica, havia dobrado de tamanho.
Erick relata que evitava consultas de rotina por receio de sofrer violência ou desrespeito à sua identidade. “O sistema não está preparado para a comunidade LGBTQIA+. Já passei por ginecologista que não sabia lidar nem com mulher cis lésbica”, afirmou. O temor, comum entre pacientes trans, afasta a população dos exames de rastreio, como mamografia, PSA ou Papanicolau, e contribui para diagnósticos em estágios mais avançados.
A presidente regional da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) no Rio de Janeiro, Maria Julia Calas, confirma o impacto desse estigma. “Do segurança da porta ao médico, o preconceito é frequente. Muitos preferem não ir ao consultório para evitar constrangimento”, diz a mastologista. Para apoiar profissionais e pacientes, ela e a oncologista Sabrina Chagas organizaram o guia “Nosso Papo Colorido”, lançado este mês com orientações sobre prevenção e acompanhamento oncológico para a população LGBTQIAPN+.
As especialistas destacam ajustes já recomendados: homens trans que não realizaram mastectomia devem seguir o protocolo de mamografia, enquanto mulheres trans em uso de hormônio feminilizante precisam do mesmo rastreio após o desenvolvimento de glândulas mamárias. Já o câncer de próstata permanece um risco, ainda que reduzido, em mulheres trans que bloqueiam a testosterona; nesse grupo, o PSA pode ser menos confiável e o exame de toque exige avaliação individualizada.
Calas informa que a SBM prepara, em parceria com o Colégio Brasileiro de Radiologia e a Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, novas diretrizes específicas para rastreio de câncer de mama na população trans, previstas para o início de 2024. O objetivo é estabelecer protocolos claros e criar ambientes mais neutros, que não reforcem estereótipos de gênero e estimulem a adesão aos exames.

Mesmo após a retirada total das mamas, Erick ainda enfrenta incertezas sobre o uso de terapia hormonal masculina. “Perguntei ao meu oncologista se poderia tomar hormônio e ouvi ‘não sei’. Não sou o primeiro homem trans com câncer de mama; faltam estudos”, comenta. Para ele, o acolhimento recebido nas redes sociais e o suporte familiar foram decisivos para seguir o tratamento. “Sem esse apoio, dificilmente eu teria conseguido”, conclui.
Profissionais ouvidos reforçam que respeito à identidade de gênero, linguagem adequada e capacitação das equipes são passos imediatos para reduzir o atraso no rastreio e garantir cuidado oncológico efetivo às pessoas trans.

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